Ninguém sai intacto do luto
ninguém sai intacto do luto. o luto modifica cada entranha do nosso corpo, cada célula, cada pelo do braço sente o efeito da falta de alguém à mesa. exatamente no dia posterior à perda, as pessoas seguem indo ao trabalho, o padeiro se dedica em produzir uma leva de sonhos - e dentro da gente, milhares de sonhos futuros despedaçados com uma ligação. uma ligação que faz um corte entre quem a gente era antes e passa a ser depois. um corte em todas as expectativas de viagens, novas músicas a serem compartilhadas, restaurantes a serem conhecidos, mares, rios e estradas a serem visitadas. um corte em tudo aquilo que a gente acreditava ser e tudo aquilo que um dia tínhamos esperança que seríamos. um corte no meio do peito, com uma cicatriz que atravessa todo o tórax e dói, sangra, e segue sangrando e curando, sangrando e curando, sangrando e curando, infinitamente. enquanto isso, o padeiro segue produzindo sonhos, o empresário segue enchendo o tanque no posto de gasolina, o artista segue criando sua próxima arte. e a gente ali, despedaçado. e a gente ali, olhando para o futuro e se perguntando qual o sentido da sua existência.
ninguém sai intacto do luto. ele aprende a bater na nossa porta em momentos mais indelicados, ele se torna um visitante chato que, com o tempo, a gente precisa aprender a deixar entrar e sentar à mesa, porque lutar contra ele traz mais sofrimento. a gente não pode negar a sua existência porque, ao negá-lo, negamos também a nossa dor - e negar a dor causa até doença física, dizem os especialistas. a gente aprende a deixar o luto entrar, serve um café, e delicadamente pede que ele se retire quando sua visita está se prolongando. e é só com o tempo que a gente tem coragem de mandá-lo embora, sempre sabendo que seu retorno é inevitável. o luto traz a percepção de que nunca mais teremos aquela nossa versão existente antes da ligação - pra uns um alívio, pra outros um martírio. tem muitas coisas que o luto modifica pra melhor, todavia. ele nos traz a percepção mais certeira de que as coisas têm, realmente, um fim. até então os fins que a gente tinha vivenciado, como fim de relacionamento ou fim do café passado, resumem-se a nada. a gente aprende, aí então, o que é realmente a finitude humana. isso faz com que a gente aproveite um pouco mais os minutos com aqueles que amamos, e faz com que tenhamos mais coragem de dizer o que sentimos a elas - porque o tempo é curto. o luto nos traz também a percepção de quem aquela pessoa era para nós - e principalmente do quanto a sua presença no mundo nos fundava como ser. muitas vezes perder alguém importante faz com que uma parte da nossa essência se vá junto para debaixo da terra, e a gente se vê perdido em encontrar quem somos sem aquele olhar. muitas vezes é o olhar do outro que nos funda, e a falta dele torna a busca por sentido na vida ainda mais difícil.
ninguém sai intacto do luto, e ele é insistente, pois ficará para sempre. será para sempre um convidado não-tão-desejado, mas que a gente vai precisar aprender a conviver. é chamando o luto para a mesa que a gente aceita o abstrato e aprende a chamar também à mesa, como convidado de honra, a pessoa que perdemos. é convidando ela à mesa que reverenciamos sua existência, mesmo sabendo que não é mais física na Terra. é convidando ela à mesa que temos a certeza de que, um dia, esse céu estrelado foi compartilhado e que, por isso, a vida vale mesmo a pena.

0 comentários :
Postar um comentário