Do avesso mais uma vez.

Era um dia que iniciou do avesso. Mônica logo percebeu que as coisas não dariam certo e que com certeza acabaria olhando fixamente para o teto às dez horas da noite em uma sexta-feira, com meia garrafa de gin no criado-mudo e um livro que não suporta mais ler marcado na página em que Santiago derramou seu último gole de café. Tinha certeza que aquele dia teria chegado para que ela desistisse de algo ou finalmente começasse algo que fosse relevante em sua vida.
Trabalhou o dia inteiro, fez pausas mais longas para fumar na cobertura do prédio e cada vez que o vento frio congelava suas orelhas, lembrava-se de quando Cássio a segurava com as duas mãos, esquentando suas orelhas e beijando levemente os seus lábios, como alguém que não se importa com qualquer faísca de sentimento mas ainda assim quer demonstrar o mínimo de carinho por alguém. Talvez à noite iria naquele mesmo bar, tomaria o mesmo Plymouth ou arriscaria algumas doses secas de uísque. Qualquer coisa que afastasse a sombra daqueles caras que ela mal conhecia.
Fim de expediente. Chegou em casa e tomou um banho mais longo e mais quente, tão quente que ao sair suas pernas estavam vermelhas e a toalha não era mais tão macia ao encostar em seu corpo. Seus cabelos molhados gelavam seus ombros nus, seus pés pediam um par de meias e um cobertor para abraça-los. Mas Mônica teimou: já que o dia tá tão assim do avesso, vamos terminar virando também alguns copos.
Calçou uma bota surrada e uma meia-calça preta. Vestiu sua capa vermelha que poderia protegê-la da chuva sem absorver uma gota de água. Chegando no bar, encontrou Geovane, no lugar de sempre. Logo que ela sentou no banco alto, Geovane a recepcionou com um sorriso largo e um leve odor de peixe frito, o qual ela já estava praticamente acostumada.
Geovane começou a preparar sua bebida – Mônica não precisava dizer nada a ele, ele sabia exatamente qual bebida ela estava precisando, tudo isso apenas observando a forma como ela entra no bar, a roupa que veste e o olhar que lança. Enquanto isso, ela começou a observar as diversas garrafas vazias expostas na estante e em cada uma delas começou a atribuir os romances que teve, os quase-amores, os deveriam-ter-sido-mas-não-foram, e começou a rir sozinha, vendo que aquelas garrafas, embora todas diferentes de formato e  com cores um tanto extravagantes, eram vazias. Todas vazias. Viu nelas cada fase de sua vida amorosa, cada momento de deslize ou mesmo as diversas formas de encarar o amor. Todas vazias. Geovane estava concentrado, o bar começava a encher, os mesmos rostos de sempre, os caras de sempre trazendo outras garotas para um encontro, “o primeiro e último de todos, mal sabe a coitada”, pensava Mônica.
Levantou-se e começou a analisar os quadros dispostos nas paredes de tijolo à vista, quando de longe avistou Cássio chegando no bar com alguns amigos da banda de seu irmão, olhou-o por alguns segundos e percebeu que não sentia nada. Nem felicidade, nem excitação, nem tristeza e muito menos nervosismo. Era mais um cara, mais uma garrafa vazia. Alguns minutos depois, enquanto viajava em seus pensamentos olhando um quadro dos Beatles, sentiu perto de si um perfume um tanto quanto familiar. Santiago chegou atrás dela e beijou sua bochecha direita, o suficiente para Mônica dar um pulo. Abraçaram-se, olharam-se durante alguns segundos e falaram amenidades, “como ela está?”, perguntava ela. Ele ria, respondia com desdém e permanecia olhando fixamente para seus lábios. Mônica desconversou, afinal aquele dia estava tão do avesso que sentia que tinha perdido seus desejos, suas taras sexuais ou mesmo a vontade de desenvolver uma conversa. Sentou-se novamente no banquinho em frente à Geovane, que a alcançou um copo raso com meio Plymouth e uma rodela de limão.
_ Esse é pra ti, bem do jeito que tu gosta. – disse Geovane, usando a ponta de seus dedos para puxar um fio do cabelo bagunçado de Mônica, demonstrando preocupação.

Mônica sorriu e resolveu que esse copo duraria a noite inteira, porque não queria voltar para cada tão cedo. Enquanto Geovane continuava indo de mesa em mesa, servindo cervejas e preparando coquetéis, Mônica chegou a conclusão de que sentia por Geovane mais afeto do que sentia por
qualquer daquelas garrafas vazias, daqueles caras vazios. Sentia que Geovane sabia sobre ela coisas que nem ela sabia e que tinha uma paciência do cão para ouvir seus lamentos. Geovane sabia exatamente do que ela precisava, servia bebidas que ela não sabia o gosto mas que tinha certeza que gostaria. Geovane era quem estava ali para o que desse e o que viesse, encantava por ser uma garrafa simples, mas cheia. Cheia de tudo aquilo que as garrafas vazias, mesmo que algum dia tivessem sido cheias, não poderiam acrescentar em nada em sua vida.
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Autor Reckless Serenade.

Como diria Gabito Nunes: "eu é que tenho mania de - uns chamam de dom, outros de doença psíquica, e eu gosto de conceber isso como um estilo de vida - romancear tudo."

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